A Venezuela não funciona exatamente como um relojoeiro desejaria e nosso grupo, não conseguindo fazer todas as reservas necessárias, teria de apelar para a fé na Providência Divina. Penso que, se o Universo todo foi criado sem nenhum planejamento preliminar, as nossas férias, um evento com dimensões significativamente menores, também poderiam dele prescindir.
Quatro já haviam chegado no dia 27/12 e tiveram que enfrentar, por seis horas num táxi, 300 e poucos quilômetros de Caracas a Puerto La Cruz. De lá, outras duas horas em ferry boat para chegar à ilha.
Chegamos Kathleen e eu ao aeroporto de Caracas às 6:00 hs. da manhã e fomos tentar conseguir um lugar em lista de espera num voo para a Isla Margarita e assim evitar o trajeto por terra e mar. Abaixo de um luminoso amarelo que identificava a empresa aérea havia, não uma fila ou lista de espera (como se espera), mas um democrático embolado de espera, o qual não discriminava sexo, cor, credo, classe social ou ordem de chegada. Ali ficamos até que uma atendente gorduchinha sinalizou à nossa intuição que começaria a escolha de alguns eleitos que desfrutariam a invenção de Santos Dumont, deixando a grande maioria no mesmo lugar onde até então estivera.
Mantenha a coluna ereta e a mente tranquila, gafanhoto! Séculos de meditação em milhares de mosteiros ensinou algo a outros que agora aproveitaria a mim.
A senhora gorduchinha observa aquele estranho ser esquálido, calado, catatônico, circundado por uma população obesa que levanta notas de dinheiro e brada pedidos antecedidos por "amor", "corazón", "mi vida", "mi cielo". Curiosa, olharia para o ser plantado tal qual uma árvore à espera do vento, com uma mochila às costas, aparentado a uma experiência mal-sucedida de cruzamento genético entre tartaruga e Marco Maciel.
Quais desígnios do destino e programas de milhagem, quais passos haveria caminhado, quantas cadeiras heveria ele sentado até chegar àquele saguão ? Por que cargas d'água, afinal, não levanta os braços ou empunha notas? Estaria sem forças após uma noite passada, entre cochilos, à base da alimentação fornecida pelo serviço de bordo?
É o momento! Fui olhado e visto. Eu existia para a aviação comercial! Estendo o braço com os passaportes à mão, à velocidade de reflexos que fariam lembrar a todos que, uma vez mesatenista, assim o serei enquanto mantiver meus membros superiores.
O tempo não pára, mas pode reduzir sua marcha se forem mais abundantes as sinapses no cérebro. Olhando os livretos, a senhora, movida pela mesma genética da qual falávamos a pouco, lembrou-se de outro saguão, assim chamado salão, e das cadernetas de baile de sua avó, envolvidas em papel de seda e guardadas como troféus, prova material dos felizes anos da juventude. As cadernetas eram compostas entre o recato e o atrevimento, obtendo o difícil equilíbrio de preservar alva a reputação e afastar o "chá-de-cadeira". Circulariam entre os pretendentes por toda a Quaresma, enquanto moças e rapazes arranjavam-se como podiam para treinar os passos de dança, até que chegasse o aguardado Baile de Aleluia, no sábado acompanhado pela mesma conjunção adjetiva.
Para onde foram aqueles dias? Que forças levaram a Humanidade a extinguir as cadernetas de baile e proliferar os passaportes? Aqui no saguão, antes chamado salão, não há esperas que valham 40 dias. Demasiados são 40 minutos. Repetem-se "amor", "corazón", "mi vida", "mi cielo", mas quem diz isto não mais pede uma dança, somente implora por assento num vôo que o leve mais longe e, mais tarde, a maiores decepções.
Por um quase momento a senhora corre os olhos pelo braço esticado e procura os outros olhos escondidos entre lentes e olheiras. "Dónde buscas llegar, flaquito?". Estica o quanto pode os braços curtos, ponteados por dedos roliços. Não teria chances como mesatenista. Toma os passaportes. Estava feito: nós não conheceríamos Puerto La Cruz e o ferry boat.