quinta-feira, 17 de abril de 2008

Começa a Caminhada

Era chegada a hora. Na manhã do quarto dia ficariam para trás todas as dúvidas e planejamentos, receios, medos, pavores, pânicos e comiserações, debates acalorados sobre o melhor tecido a usar na trilha, o diâmetro mais adequado das abas do chapéu, o FPS do filtro solar, os medicamentos necessários, úteis, desejáveis, indiferentes, evitáveis e proibidos, as técnicas de alongamento, o modo perfeito de empunhar um stick ou laçar os cordões das botas. Objetivo final: Annapurna Base Camp, a 4.130 metros.

Meus amados amigos não vão gostar de ouvir isso novamente, mas não resisto à tentação de dizer que era uma caminhada de mauricinho, estilo paulistano, mega-estrutura com uma legião de guias, sherpas e carregadores a nos ciceronear, reservas em lodges, banhos quentes, shows musicais, três refeições quentes por dia, à la carte, com direito à entrada, prato principal e sobremesa. Em casa eu não como tanto...
Nossa única preocupação seria não se perder no caminho e carregar uma mochilazinha com garrafa d’agua, câmera fotográfica, um impermeável... coisas deste tipo. Além de, claro, chegar lá.


Fomos levados até Nayapul (1.070 metros) por um veículo automotor de transporte coletivo adequado às estradas locais, atravessamos uma ponte para entrar na Área de Conservação do Annapurna e... “chegou a hora dessa gente bronzeada mostrar seu valor”: o trekking começara!


Primeira impressão: a trilha era toda calçada com pedras planas, em longas escadarias, uma trilha muito mais fácil e confortável do que um caminho irregular. Porém, tantas pedras não estão ali à toda, Gafanhoto: o desnível é animal! Trechos planos, semi-planos, quase-semi-planos ou com aclive em ângulo civilizado não seriam comuns. Ou subíamos muito, ou descíamos bastante.
O briefing matinal que o ingênuos turistas fariam ainda por alguns dias mostrou-se um tanto desprovido de utilidade prática. As informações do roteiro diziam algo assim:

Tikhedhungga / Ghorepani
A partir de Tikhedhunga a trilha segue
bastante acentuada com destino a Ulleri, um vilarejo sherpa a 2070 mts. A partir
daí a subida fica mais amena e com belos visuais da floresta de Rhododendron,
passando pelos vilarejos de Bahunthanti e Nayathanti. Mais algumas horas de
caminhada e chegaremos em Ghorepani, nosso destino final de hoje.”
O que o roteiro não dizia é que o Nepal tem evidentes deficiências de terraplanagem: nós sairíamos de 1.430 m, subiríamos a uns 2.000 m, depois descemos até 1.200 m e subimos tudo novamente até 2.860. Mais ou menos isso. Denise, a ginasta, nada respondia às queixas dos mortais: apenas sorria e fotografava, saltitando degraus de par em par.

O primeiro contato com os alojamentos (londges) foi deveras positivo. E assim foi do primeiro ao último. Funcionam muito bem, com quartos simples e confortáveis, colchões e travesseiros, lençóis e fronhas. Houve, entretanto, certa divergência nas opiniões quanto à periodicidade de troca destes últimos, variando de semestral a bienal, dependendo a quem fosse perguntado.

E havia água quente, um presente dos deuses que abundam na religião hindu. O estoque de água caliente não chegava para banhar a todos, mas logo descobrimos o utilíssimo recurso do banho de canequinha, praticada com grande sucesso de público desde os primórdios da civilização latino-judaico-cristã-euro-ocidental. Pedia-se ao estalajadeiro um balde de água quente, o qual era providenciado tão logo o fogão estivesse desencumbido do preparo do jantar. Quem jamais esteve em situação semelhante por certo não imagina como é boa a sensação de não ter de mediar conflitos internos por horas a fio antes de eleger entre tomar banho de água gelada e dormir sujo.

Dormimos em quartos quentes, secos e limpos todas as noites do trekking, o que é infinitamente mais confortável que dormir em barracas.

Nos vilarejos e por toda a trilha há comércio de gêneros de primeira necessidade: chocolates, refrigerantes, batata-frita, lenços, papel higiênico. E também de artesanato manufaturado mundial, objeto de pesquisa constante de Daniela e Cris Japa, as quais distribuíram rúpias e mais rúpias pelo caminho em troca de anéis, brincos, braceletes, tecidos, pashminas, sandálias, objetos de decoração. A cada nova parada os carregadores arregalavam os olhos e procuravam estimar quantos quilos adicionais haveria na bagagem até que acabasse o dia.

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